sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A gente se acostuma

Ando cansada deste nosso espírito pessimista e derrotista a que depois, muito orgulhosamente, chamamos característico do nosso povo. Esquecem-se é que já está na altura de o Fado deixar de ser desculpa para tudo e a palavra Saudade parar de ser aquela que mais gostamos de usar só, e apenas, por unicamente existir na nossa língua. Sim, concerteza fomos um povo de heróis, demos muito a este mundo, também sofremos muita coisa. Mas, da mesma maneira que continuaremos a sofrer, também podemos continuar a ser um povo de heróis. Só que parece que anda tudo adormecido, carregamos connosco um pesado saco de pseudo-obrigações, cansaços, vaidades e comodismos e acabamos por delegar no vizinho do lado a responsabilidade de engrandecer o nosso Portugalzinho.
E depois é assim, as pessoas nascem, vão para a escola, depois universidade, depois trabalham, casam, têm filhos, reformam-se, vêm os netos e morrem. E pouco ou nada deixam sem ser a famosa Saudade e a causa da morte será, concerteza, o Fado.
Isto tudo porque nos habituamos:

"A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todas as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra.
E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra,dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone:hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita.E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar.E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais.E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais.A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido,desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor.Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potáve.
À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio,a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma. "

4 comentários:

  1. oi. Foi vc que escreveu isso aí?

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  2. Ola. O inicio sim. A parte que está entre « » não é minha por isso é que pus entre « » para puderem saber. So que nao encontrei o nome do autor.

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  3. É muito verdade. O texto entre " " é de Marina Colasanti.
    Obrigado, quem pode delirar, por me lembrares que não me devo acostumar demasiado.

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  4. É muito verdade. O texto entre " " é de Marina Colasanti.
    Obrigado, quem pode delirar, por me lembrares que não me devo acostumar demasiado.

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